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À conversa com o autor Rui Marcelino


À conversa com...

Rui Marcelino

Livros de Vidro (LV)- Diga-nos, quem é Rui Marcelino?

Sou alguém que sempre sonhou seguir o caminho das artes. Na juventude fui músico, por influência do grande gosto que sempre tive pela música, mas depressa percebi que deveria deixar a prática musical para me limitar a ser um bom ouvinte da mesma. Também a leitura e o mundo dos livros sempre me encantaram, por isso fiz várias tentativas de escrita, entre os 15 e os 18 anos, mas não resultaram. Só mais tarde, aos 20 anos, escrevi o primeiro romance, que decidi não editar, pelo facto de ter uma forte componente autobiográfica. Talvez agora, decorridos alguns anos, venha a ser reescrito e editado.

Durante alguns anos, com o evoluir da carreira profissional e a abertura da minha empresa, bem como o permanente acompanhamento que esta me exigia, pouco tempo podia disponibilizar para dedicar à escrita, o que gerava em mim imenso desconforto. Por esta razão, porque sentia necessidade de escrever, aos 40 anos de idade decidi dedicar algum do meu tempo à escrita, o que me tem proporcionado muito prazer. Desde então escrevi cinco romances: “Sultão do Vale”; “Dos Sentimentos – Coesos e Mendazes”; “O Senhor”; “Trilhos de uma Vida” e “Abrigados”.

Continuo entusiasmado para continuar a escrever, sonhando com o dia em que possa dedicar a maior parte do meu tempo à escrita.

LV - Como surgiram estes livros sob a temática dos sem-abrigo? É um tema que o preocupa?

Sim, preocupa-me ver alguém viver de forma tão indigna, tão miserável. A seres inteligentes isso não deveria acontecer. E se há aqueles que caem nessa desgraça por incapacidade mental e falta de acompanhamento familiar ou social, há também outros que se vêm nessa condição devido a adversidades de ordem económica ou familiar que não conseguiram controlar ou o mundo não permitiu que controlassem. Incomoda-me ver alguém viver muito abaixo da considerada digna condição humana. Passar fome e não ter um teto para se abrigar é muito mau. É degradante. Desse modo é difícil alguém viver feliz.

O tema que decidi dedicar a estes livros, “Trilhos de uma Vida” e “Abrigados”, surgiu no início da recente crise económica que devastou e ainda não abandonou o nosso país. A carência acentuou a miséria e o número de homens e mulheres sem-abrigo aumentou substancialmente. Coincidiu também com uma viagem que fiz a Paris, em pleno inverno e vi, às 11 horas da noite, vinte e sete homens sem-abrigo deitados, lado a lado, encostados para se aquecerem, numa zona central da cidade, debaixo de uma sacada de um prédio. Esta cena mexeu comigo ao ponto de decidir que este seria o tema do meu próximo livro. Assim nasceu o “Trilhos de uma Vida”. Quanto ao “Abrigados”, confesso que só decidi escrevê-lo depois de desperto por alguns leitores para a necessidade de dar continuidade a esta temática e à história do “Trilhos de uma Vida”. Queriam mais e eu decidi satisfazer a sua vontade, tendo em conta que também eu já aceitara a ideia de continuidade e muito poderia ainda escrever sem esgotar o tema.

LV- Quais têm sido as reacções aos mesmos?

As reações têm sido muito positivas. Desde pedidos para dar continuidade à história, como referi anteriormente, até à leitura compulsiva. Um leitor, com dificuldade em ler à noite, porque adormece com facilidade, leu o “Trilhos de uma Vida” numa única noite. Outros três ou quatro desejaram que a história pudesse dar origem a um filme. Reações geralmente positivas. Também algumas críticas menos positivas mas construtivas, na abordagem a um ou outro capítulo, o que é bom que aconteça, que os leitores expressem as suas opiniões, o que desde logo revela interesse pelos livros.

LV- O seu livro, Abrigados, chegou ao Vaticano. Conte-nos mais sobre essa experiência.

Sim, o “Abrigados” chegou ao Vaticano, mas o mérito começou por ser do “Trilhos de uma Vida” e de um episódio que eu ficcionei tendo por base a visita a Fátima do Papa Bento XVI, imaginando que o Papa mandava parar o papamóvel para acolher um peregrino e com ele viajar até à Cova da Iria, perante a curiosidade e espanto de quantos os viam passar, incluindo a comunicação social. Pois bem, algo idêntico viria a acontecer alguns anos depois na Praça S. Pedro, no Vaticano, quando o Papa Francisco acolheu precisamente no papamóvel um peregrino argentino, que com ele viajou na viatura branca, irradiando satisfação.

Quando vi este episódio nas notícias, também eu fiquei radiante com a semelhança ao que eu tinha escrito e enviei um exemplar do livro ao Papa Francisco, acompanhado de uma carta onde explicava a feliz coincidência. Pouco tempo depois recebi uma resposta/bênção muito agradável. Mais tarde foi a vez de o “Abrigados” viajar também até ao Vaticano, mas entregue aqui, em Fátima, em maio passado, aquando da peregrinação do Papa Francisco ao Santuário para comemorar o centenário das aparições.

LV- O personagem principal dos seus livros passa por várias situações complicadas, como foi construir este personagem? Onde se inspirou para dar voz a Álvaro Meireles?

De facto, o Álvaro Meireles não tem vida fácil, se pensarmos nos problemas que surgem mas ele consegue sempre resolver da melhor forma possível, tendo em conta as condicionantes da sua vida atual. Muito diferente da que vivera antes; uma vida de riqueza e realização pessoal e profissional. No entanto, ele consegue sentir uma paz interior muito grande, uma forma de estar e de viver que contagia as restantes personagens. Tudo o que ele faz tem o intuito de ajudar, de criar amizades, de estabelecer harmonia e bom ambiente relacional. Quando fala consegue construir pontes de comunicação, muitas vezes em climas de entendimento difícil. É um homem bom, que tem o hábito de praticar ações que sabe serem prejudiciais para si, mas sempre com o intuito de beneficiar outros que, segundo diz, precisam mais do que ele.

Repito que me Inspirei também na crise que o país atravessa, precisamente no momento em que ela começou. Pensei na necessidade de todos os afetados por essa crise criarem um fortalecimento interior que os ajudasse a resistir aos maléficos efeitos da mesma. Quando os bancos começaram a apoderar-se de casas de habitação por falta de pagamento das prestações de empréstimo, ou as empresas a falirem e a lançarem para o desemprego milhares de pessoas, foi algo muito forte e que influenciou grandemente a minha decisão. Não podia ficar indiferente à agiotagem que via progredir e afetar os menos dotados de poder económico.

LV- Sentimos que os dois livros têm uma proximidade com a religião, a peregrinação e a ajuda ao próximo. Foi buscar isso a si mesmo ou é fruto da sua inspiração/imaginação?

Sim, fui buscar grande parte a mim mesmo, à minha maneira de ser e como entendo que a vida deve ser vivida para que nela eu me sinta realizado. Gosto de caminhar, peregrinar, conhecer mundo, outras culturas, outras formas de vida. Claro que também complementei com alguma imaginação, já que esta muitas vezes me “obriga” a isso.

Por exemplo, sempre achei admiráveis as missões que muitos homens e mulheres empreendem para ajudarem o próximo. Por isso sempre me senti fascinado com as atitudes e o empreendedorismo dos missionários, para quem o outro é o primeiro foco das suas preocupações. Um bom exemplo para aqueles que ignoram a pobreza e as dificuldades por que passam milhões de pessoas em todo o mundo, apenas porque nasceram no lado pobre do globo terrestre. Porque infelizmente são muitos aqueles que enriquecem o seu pecúlio mas sempre serão pobres criaturas, porque não sabem partilhar. Desconhecerão sempre como é enriquecedor apreciar o sorriso de alguém agradecido.

Por isso mesmo, estes meus últimos livros pretendem lembrar aos leitores as boas causas que a vida tem para nos proporcionar e uma delas é, sem dúvida, saber ser solidário.

LV- Outro pormenor que não nos escapou, foram as suas referências a vários monumentos e locais por todo o país. É um homem que gosta de viajar e de conhecer os pontos históricos de Portugal? Qual foi a sua intenção ao descrevê-los no seu segundo livro?

Sim, gosto imenso de viajar e conheço muito de Portugal, de norte a sul. Já conhecia os locais que descrevi mas fiz uma segunda visita para melhor os descrever e poder também tirar algumas dúvidas. O intuito principal ao descrevê-los no “Abrigados” foi, além do prazer de relatar um quase diário das personagens viajantes, suscitar nos leitores a vontade de conhecerem os locais descritos no interessante e bonito Portugal que temos. Alguns em locais recônditos que decerto muitos portugueses não conhecem. Quando o livro for traduzido para outras línguas será também um bom meio de divulgação turística.

LV- Como surgiu o desenho da capa do segundo livro? Porquê uma pintura a óleo?

Após várias propostas de design para a capa, nenhuma delas me agradou e o mesmo aconteceu com a editora, que me sugeriu a possibilidade de contactar uma pintora, Maria do Céu Sá, para elaborar uma pintura a óleo sobre tela, que retratasse as principais personagens do livro. A pintora aceitou a sugestão e assim nasceu a capa. Quanto à tela, foi-me oferecida e guardo-a com muito carinho.

LV- O que lhe ofereceram estes livros? E esta história em geral?

Estes livros enriqueceram-me muito, do ponto de vista pessoal e sentimental. Emocionalmente mexeram muito comigo mas conseguiram, ao mesmo tempo, transmitir-me um enorme prazer e sentido de dever cumprido em cada página escrita, como se tivesse sido incumbido – por mim mesmo – da missão de levar por diante o alerta social que as suas páginas revelam e desde logo a sua história tenta solucionar com o projeto do Ministro, de dar abrigo aos sem-abrigo. Por isso ele tinha o hábito de dizer: “Se eu fosse ministro!...” E conseguiu.

LV- Há mais livros para sair da gaveta? Se sim, dentro do mesmo género?

Sim, há mais livros para saírem da minha gaveta mental. Tenho vários projetos em computador, com grande parte da estrutura ensaiada, alguns já com título e com o princípio, o meio e o fim pré-definidos. Um deles esteve já por duas vezes para ser o próximo mas vai também agora continuar à espera, pois ganhou prioridade outro projeto. Vou dar protagonismo a um homem no mar, tendo por base o trajeto que uma garrafa mensageira fez desde o Cabo de S. Vicente até às Bahamas, onde foi encontrada passados 380 dias e percorridos no mínimo 6.460 kms. Assim, a próxima história vai ter algum mar.

LV- O que aconselha a quem nos segue e quer ler os seus livros?

Não creio que sejam necessários conselhos para quem desejar ler poesia, seja ou não minha. Só se, em hipótese remota, formos uns iniciados nesse género, e mesmo assim julgo que seria preferível deixar o leitor a sós com o trabalho, explorá-lo por si, senti-lo por si, empreender a viagem sem qualquer desvio exterior, oriundo de conselhos que lhe possam chegar. Portanto, respondendo à sua pergunta mais concretamente, o que poderei sugerir é somente uma menta aberta e receptiva. Que cada leitor faça por si a viagem, seguro e confiante, apesar dos naturais receios de não absorver a totalidade da intenção original. E depois? Essa também é uma das belezas da poesia… Sobre ela debruçados, nem sempre vemos o seu autor, como julgaríamos. Mas o nosso próprio rosto. Claro que para tudo isto ser possível, deve existir uma “fome” no leitor. Sem ela como mote, a viagem não se realiza verdadeiramente, mesmo que a leitura se complete.

LV- Como se sentiu ao ver os seus livros alvo de opinião no blogue?

Gostei. Uma crítica que se enquadra na forma como também eu próprio analiso o que escrevo. Sei que há outras formas de escrever, de narrar uma história, de construir a trama, a descrição e os diálogos; melhores ou piores, depende de quem analisa, mas esta é a minha forma de ser escritor e assim espero continuar. Melhorando sempre o que entender dever melhorar, obviamente, quer seja por minha perceção ou sugestão de leitores ou críticos. Estou sempre aberto a receber opiniões, mas caber-me-á sempre a mim decidir que caminho percorrer. Cada autor tem a sua forma de se expressar e o seu caminho para percorrer, é o que eu penso.

LV- Por fim, quer deixar alguma mensagem a quem nos segue?

Sim, claro que quero. Uma mensagem de esperança. Nos meus livros tento criar uma trama que prenda o leitor à história, que o faça sentir-se no seu interior, que faça parte do que eu escrevo. No entanto, o meu maior querer é que tudo isso seja positivo, que o leitor sinta que enriqueceu ao ler o que eu escrevi. Se eu conseguir que tal mensagem aconteça nos meus livros, então sim, terá valido ainda mais a pena tê-los escrito. E… sejam felizes, porque todos merecemos sê-lo, apesar das contrariedades, essas coisas infelizes que por vezes se atravessam no nosso caminho.

Outubro 2017

Deixamos um agradecimento ao autor pela disponibilidade.

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